17 de janeiro de 2008

Conto de título dispensável



Já passava das onze
quando ela se deu conta do fim do cigarro,
do calor incômodo
que subia pelos dedos estáticos.
Dedos de mulher,
que naquele junho
chegado quase que por surpresa,
refletiam uma leveza,
uma outra saudade.
Como quem faz que se levanta,
ela, num esforço mensurado e comedido,
leva ao cinzeiro já visitado,
outra réstia da companhia silenciosa
que lhe fazia sala.
Não carregava porém, nos olhos
aquela calmaria simbólica,
dos que fingem o desconforto essencial
recém causado pela partida,
pelo final,
mas uma claridade casuística
esquecida pela verdade que,
agora longe,
há algumas horas
ainda lhe tocava a nuca.
E escorria
aos cantos da boca contornada,
uma linha engraçada de perfeição,
que imprimia no rabisco feminino da face
uma vergonha interiorana,
sedutora.
Timidez que brilhava longe,
como que o próprio Deus quisesse ver,
com olhos de quem se sabe homem,
a beleza que tem
um sorriso de mulher.


Dentre o ventre



É a simplicidade e o caos
ou o que ela quiser.

É o que se fez em ferro
entre desejo e fé.

O que se fez em seio
e sinceridade,

e se vestiu de calma
e ansiedade.

Que se apossou de tudo
e se chamou mulher.


13 de janeiro de 2008

Inominado



E as horas mal orientadas que nos navegaram
vão ficar pra trás, feito quem perde o trem.
Frio que vai além.
É o que coube e o que a alma pôde suportar.
E todos os espinhos ditos
entre a água e o caos menor,
todos os vidros que espalharam no chão
enquanto dormíamos,
serão veludo silencioso
na precisão de quem não se importa
e apenas ama.


3 de janeiro de 2008

Bamba de gaveta



Quis um samba carinhoso
pra te dar em homenagem,
quis um samba de garagem
que rolasse devagar.

Quis que fosse alegoria,
pra você porta-bandeira
se vestir de ouro inteira,
qual laranja no pomar.

Quis então falar de amor,
mas foi forte o nevoeiro
e quebrou o meu pandeiro,
ficou nada no lugar.

Quarta-feira despedida,
caio morto de cansaço
na beirada do terraço,
coração de batucar.

Nesse meu samba chorão,
não vai ser o nevoeiro
nem a falta do pandeiro.
Pra cuíca reclamar.

A mulata do cordão,
quarta-feira quero ver
com os olhos de querer:
carnaval há de voltar.


2 de janeiro de 2008

A orquídea e o titã



Na sacada vento frio, anunciação de abril.
No abril a solidão é palpavel e densa,
e amortece o corte lento
da cidade lá embaixo.
Daqui de cima, euforia silenciosa;
luz de movimento mudo.

No abril tudo corre como cinema antigo,
cinema lento,
morfina colorida.
Passo a passo o dia escorre dum velho vinil qualquer.
Um vinil sequer.
Conjugação engatilhada no próximo copo.

No abril é sempre um tanto frio,
um tanto só.
Um noir sombreado, um olhar de fraca fixação;
branco e batom.
Desbotado nevoeiro na métrica casuística
que os sonhos escondem.

No abril de pouco cheiro,
arrastado e singular,
distoante e arredio.
Canto quieto e paralelo,
acidez e brio.

E a porta gris cerrada
em que se fecha
belo e vil,
nem com cruz nem com espada,
nenhum outro mês
abriu.