26 de maio de 2007

Pra viagem



Nosso amor é uma canção de bolso.
E você conta os postes com o dedo
- me faz rir e amar mais.
É simples e bonito.
Como se fosse um poeminha miúdo.


Escritura



Eis a palavra venenosa: Bem posto foi o que desarmado e fraco, pôde dobrar a moldura férrea da criação, e cavar no peito fundo de quem houver, tudo quanto for verdade e pavor.
Sendo então o prefácio dos cinco infernos, hei de enfrentá-lo com escudos e espadas de silêncio, enquanto a tarde se derrama em passarinhos.


Poema pra pai ser mais feliz



Sei que é nesse azul todo certo que paira suave a fortaleza,
a substância.
Seja neste inverno ou no porvir,
vai ser aí que vou me olhar - por entre a fresta clara e sóbria.
Prumo, rumo, pai.
Norte.


Alfaiataria



Não se pode combinar versos. Não são como o sapato e o cinto.
Cabe ao poeta apenas cuspí-los em preto e branco, para que vivam no degradê e morram verdes.
Eles são de todos e qualquer um, menos do poeta.


Ginásio



Já reparou na cômica simplicidade plana das coisas?
Nos atravessam infinitas essências, sem as quais sequer existiríamos.
Por isso afirmo: somos geométricos.
(E ponto!)


Raso



Antes que me atires esse vaso, recorda como foi nosso ontem - todos eles.
Procura no peito e nos botões da sua blusa branca, ou onde possa ter sobrado rastro dos meus labios (carne viciada no seu nome).
Põe à frente dos olhos o sabor magro das noites de sal e perfume.
Ou se quiser, esqueça.
Pouca coisa ainda vale, antes que me atires esse vaso.


24 de maio de 2007

Eterno: poema que se foi



Agora não posso mais segurar tuas mãos,
nem mesmo nos ombros carregar.
Terás que pisar o barro,
e na densa matéria soprar teus passos com leveza.
E quando olhares para o alto
buscando a verdade brincalhona,
lembra-te que é do barro que agora pisas que nascem as flores.
Flores que outrora, do alto dos meus ombros, tu colhias à tardinha
- quando eu ainda era pai, filho e poeta.
Agora sou apenas barro.


Barganha



Esgotei meu suor e minhas lágrimas.
Só me resta mesmo o sangue,
e esse não entrego.
Não pelo fio fino e desbotado naquela ultima prateleira,
que você (pálida, obsoleta)
insiste em chamar
O Nosso Amor.


Caco



É tanto cinza que nada escapa aos olhos de contraste - cinza muito branco.
Muitas coisas cruzam a linha da média consciência e eu, calmo e num quase-sorriso tímido, tento agrupá-las em um pacote de mínimo nexo. Vão.
É coisa de cabeça, de cansaço. Ou mesmo da alma quebrada em dois pedaços: nunca ao meio.
A gente sempre fica com a menor parte.


23 de maio de 2007

Nós



Eu alguém, você qualquer.
Eu tô indo, você vier.
Eu queria, você quiser.
Eu me posso, você puder.
Eu após, você até.
Eu chorando, você sequer.
Eu sou todo, você não é.
Eu menino: você mulher.


Caos



Céu limpo, vento suave - cheiro de amaciente, crianças sorrindo, ciranda, velhinhos simpáticos jogando migalhas aos pombos.
O que é meu amigo?
Provavelmente o Juízo Final desfarçado de domingo.


Acontecido



Ela se levantou,
limpou os joelhos
e as mãos muito brancas e pequenas.
Ajeitou com zelo e vaidade
o vestidinho verde claro.
E sem largar sequer
uma gota de sal e água
voou alto e explodiu!
Numa supernova de mini-sorrisos.


Down: de outros dias



Que toda a saudade despenque morro abaixo. (Queda surda, seca.)
E nascerá aos seus pés o lírio rasgado e calmo, que irá vomitar canções e sonetos de pura lembrança.
Lembrança de um dia bonito, que fosse antes um simples dia que todo um outono.


Crônica aguda



E mesmo que não nos passe pela cabeça, ou sequer cruze nossas visões - sentimentos, sopros ou vazios, um dia todos descobriremos que a avassaladora e crescente intensidade do fluxo da vida, é apenas um catalisador do fim.


12 de maio de 2007

Contínuo



Poesia é traço,
é pedra,
fruto e compasso.
Fração de passo.
Chão e capacho,
melado no tacho.
Réstia de rima: assim eu acho.


Ato hipótese



Agora que já entreguei minhas armas, quero saber porque me nagaste a flor do desacerto, enquanto penteavas os cabelos revoltos, na espera da paz incômoda que o sol de ontem te prometeu.
Cumpre seu desfecho. Veste o que quiser (mas que gangorre entre o divino e o apático).
E ao te ver trêmula e nua, eu saberei que o nexo da forma, vermelho, era no fim o espelho vazado de minha menor alma - que foi sempre sua.
Ou apenas mais um conto, uma fábula curta.


Presságio



Os verdadeiros homens são aqueles que ensinam a seus filhos que o amor é saber, pelo brilho dos olhos de uma mulher, se ela quer baunilha ou chocolate.


11 de maio de 2007

Dimensões

Fitei os olhos de um homem velho.
Era uma tarde qualquer nesses últimos invernos.
O homem andava roto, sujo. Nos cabelos algumas folhas do vento último, poucos afagos.
Muitas memórias.
A barba já cinza de derrotas. Sob seus olhos pendiam rugas: pareciam gritar o enredo preto que aos tornozelos se lhe arrastava.
Os mesmos olhos que fitei.
E como ignorassem todo o redor de hades e barro, aqueles olhos insistiam num azul arrogante, azul impossível que arrancava água dos meus.
E foi assim que, numa tarde qualquer nesses últimos invernos, um homem velho e sujo, de dentro dos olhos azuis, austeros, me chamou de filho.

Espelho



Acorda amor.
Vem ver aqui da janela quantas vidas
passam rápidas pelas ruas.
Vidas de vácuo, de peito fosco.
Te esquenta.
Te cala.
Me abraça que já já a gente desce.
E aí meu bem,
aí seremos nós a passar pelas janelas deles.
Vácuo, fosco, rápido:
Nós.


9 de maio de 2007

Verbete

Saudade
Método eficaz de se manter em sofrimento pela alegria de recordar o que o tempo comeu.

Sinceridade
Extrair do choro alheio o que vai chamar, dois ou três dias depois, de consciência limpa.

Medo
Ferramenta de encolher o peito.

Felicidade
Negocinho miúdo que debaixo do nariz da gente.

Deus
Garry Kasparov de vestido branco.

Mulher
Garry Kasparov de vestido branco no meio de uma crise de identidade.

Crianças
Alcoólatras, advogados, assassinos, padres... o futuro potencialmente injetado em bolinhas fofinhas de carne, que ao sorrirem nos fazem pessoas melhores.

Sorriso
A alma no canto da boca.

Mentira
É a entrada de serviço. Funcionar funciona, mas geralmente é apertada, desconfortável, e pega mal.

Amor
Sei não.

De composição

Ele fez verso, fez prosa, causou boa impressão, morreu. Morreu como morre todo animal: fixou o olhar, teve sono e frio.
Confirmou a seqüência irônica e pavorosa da existência. Chegou ao fim. Morreu porque versou,
por que viveu. A carne dos poetas é dura;
e assim talvez se livrasse dos vermes e sozinho apodrecesse.
Ainda versa, versos agora podres como ele poeta.
Poeta podre, poeta verme.
Poeta sozinho.

8 de maio de 2007

Partidário dos Sem-Nexo

O semi-separatismo sentimental é apenas o começo da libertação da consciência ante o passado, embora não seja evidente uma relação estreita entre isso e a imensa saudade que às vezes sinto, de uma visão clara e limpa do que possivelmente (nos próximos seis calados minutos) eu chamaria amor.

Proporções

A solidão se mede em doses. Ou talvez sejam só grandezas inversamente proporcionais.

Gambiarra

E da miséria plena e pura ele tirou algumas asas e peças velhas e já meio tortas. Pedaços de anjos antigos, olhos ainda crus e algumas velas, brancas e vermelhas. Com pregos frios ele juntou tudo e fez a sua própria aurora. Mas veio a chuva fina, esposa do verão porvir, e lavou-lhe as mãos de pele grossa, e lhe mostrou que do que fizera, restaram apenas algumas poucas e miúdas gotinhas de saudade branca.

Bazar

Vendo um baú de antigos amores, onde guardo também algumas saudades, sorrisos, gargalhadas. Tem também algumas piadas sem graça, duas luas, um barulhinho de mar e o tom laranja que sempre gostei nas tardes – posso por um ou dois poemas leves. Certamente nele está o meu Calcanhar de Aquiles, meu músculo passional, meu trunfo falho em preto e branco, como um longa do cinema mudo: coração mudo. E vai de brinde.

O apanhador no campo de centeio

Talvez o uísque tenha sido o pilar da poesia construtiva. Analogicamente, como o livro que foi o gatilho de Lennon.

Espectros de um não-eu

Mais uma vez eu afronto o começo da noite
com meus olhos de escudo e minhas mãos
trêmulas, desbotadas. Mãos de ontem. Apoio minhas faces num muro baixo, escondido no lodo. Passado. Antigo, velho, boca de outras eras; eras de não-vir.
Dobras e poeira que me atravessam a porta e o peito.
Outra vez me procurei no calor do copo. Larguei.
Ergui o que pareceu leve
e os pesos, esses eu apenas arrasto,
na falta de opção melhor.

2 de maio de 2007

Poema pretensioso pra ser lido (da segunda vez) ao solo de sax

Aqui da sala dá pra ouvir você respirar uma melodia.
Assovio claro, de quem tem preguiça.
De quem ainda se esconde no lençol – batom no ombro esquerdo.
Sorriso flagrado... Fica. Te trago um café, um cigarro.
E a gente começa um outro filme
em branco e preto: hoje não vai fazer calor.
Céu cinza, jazz, sexo e fim de poema.

Segredo

Já reparou como, quando lemos, as letras parecem sempre quietas e inertes. Os livros também nos lêem. Mas eles não sabem que sabemos.

Retrô(cesso)

Catei no tempo cada passo, cada bandeira. Tive o cuidado de escolher todos os amores e espalhei por todos os ventos o quanto pesava o meu peito. Pus no bolso o sangue que escorreu das mãos do sol, antes que te acordasse. Antes que a poeira das coisas que não fizemos nos sufocasse, nos trouxesse a marca da vergonha branca, que eu gosto de sentir do seu lado. O amor cheira à laranja nas tardes meio frias. E se a gente teimar em não ouvir as pedras, pode ser que quando chegar a noite, calada e cega, sejamos apenas estranhos.Como éramos ainda ontem.