17 de dezembro de 2008

Lembrete



Na sombra da figueira,
na calma da goteira.
Lembra desse tempo, amor,
na fresta da madeira.

Na voz da padroeira,
na chuva criadeira.
Tira a fantasia, amor,
no pó da quarta-feira.

Na brisa derradeira,
em tudo mais que queira,
leva do teu lado, amor,
meu verso e minha maneira.


3 de dezembro de 2008

Espelho d'água



De sorte foram ventos calmos
que nos visitaram no cais.
E a tempestade,
que cedo ou tarde tem lugar,
é o mesmo vento que outrora manso,
agora em fúria vira o mar.
Porque não há vida sem haver o pão.
Porque não há no mundo
amor amado em vão.


22 de novembro de 2008

De sobressalto



É o quinto que me coube da beleza.
É o brilho na bateia que eu,
criança,
seguro nos dedos.
É a vontade alva e risonha
de mais um carinho.
Mais um outono.
É um tanto mais
saudoso meu peito,
que nos sóis de timidez
me devolve pro seu calor.


17 de setembro de 2008

Vento de colina



Torno em solidão tudo o que é de praxe.
Tudo que carrega um contorno certo de ser diário, de ser rotina.
E gosto dessa morfose silenciosa.
Na verdade, sinto quase um prazer em estar sozinho,
em engolir em seco as tardes de ruído que, prostradas,
saltam ao abraço dos sozinhos como eu.
É um desfrutar de tristeza que abençoa o silêncio que carrego,
num não dividir, num não partilhar,
que com apreço alimento.
Não que seja propriamente uma forma polida de egoísmo,
não creio.
É que em cada não dizer,
em cada não expor,
floresce uma parcela de beleza.
É que conservo,
sempre,
tudo o que me parece arte.


7 de agosto de 2008

Rainha de Copas



Era rainha em tempos outros,
onde choviam gotas de remorso e cinzas.
Onde a terra era negra como a pele,
a pele que queimava na brasa torpe,
à mira dos muitos dedos.
E, se fora outrora, ouro e sedas,
era agora o silêncio da névoa gelada,
no dezembro descoberto.
Ela foi tudo que haveria de ser:
Rainha, bruxa, amante
e pó.


Maybe tomorrow



Há sempre aqueles dias mergulhados no calor cinza,
em que todas as brisas, seqüestradas,
se agaixam e se escondem dos rostos pálidos.
Em que os olhos não revelam mais nada.
Dias em que os nossos rabiscos se derramam desformes
por entre as calçadas.
Dias de esquecer.
Nesse quadro de velocidade pouca,
em que o esforço do sorriso trinca os dentes,
e a comédia infernal do tempo fecha suas cortinas,
é a hora de morrer.
Encerrar uma vida fosca, profetizar o recomeço.
Porque todo dia se nasce e morre,
num desespero sádico, ávido por algum sentido,
alguma diferença.
Porque assim se constrói a mecânica de quem se vê aqui,
onde os olhos não revelam mais nada.


23 de julho de 2008

Náutica



São portos e milhas,
cascos e quilhas,
brisa e tormento.

São velas e proa,
Sal e garoa,
firmamento.

Coração de marujo é assim.
Uma nau pra levar saudade,
ele, o mar,
e só.


Delicadeza do caos



Ora, os meus demônios são meus!
Os analistas que encontrem os deles...


3 de julho de 2008

Apontameto



E às coisas que toco e vejo, ouso dizer que já foram vistas e tocadas diversas outras vezes, em diversas outras vidas.
Paro, de súbito, em frente às portas marcadas de minhas mãos e me inclino a acreditar, numa certeza breve porém incisiva, serem as mesmas portas que ainda há pouco eu rabiscava, menino, com ceras coloridas.
Me abraça um hiato incômodo, como que se me subtraíssem alguns valiosos anos; as minhas crônicas cotidianas.
Deixo passar.
De certo é meu senso que fraqueja.
A velhas portas continuam vivas
e coloridas (sabe-se lá por quem).


10 de maio de 2008

Foz



Me sento às margens do seu rio calmo,
a contar as gotas que pela sombra dos meus pecados
se abraçam e se multiplicam em valsa.
É um rio claro e raso, e a beleza insuportável que tem,
amortece a vazão feroz com que me escapam
as sinceridades molhadas que colhi dos seus olhos,
enquanto chorávamos
nossos rios de gotas abraçadas.


27 de abril de 2008

Adjetivos e cotidianos



De toda maneira,
por mais que tentem abocanhar as verdades escorregadias
com explanações e justificativas afiadas,
não se poderá evitar a manobra crônica
das engrenagens encantadoras que,
nas terças ensolaradas,
nos umidecem de emoções caseiras.


6 de abril de 2008

Mínima



Como letras postas e letras pálidas no papel.
Como o escrito desperdiçado no vazio, o escrito feito para o vazio.
Como distintas e santificadas foram outras letras,
não menos pálidas que as de agora.
Ao alto prumo de quem escreve para o acaso formal e construído,
para o contexto cheio e forçosamente emocionado,
interponho minha letra vaga.
Me furto ao mérito de fazer brotar a água dos olhos.
Cedo às amenidades sem graça e pra elas entrego meus focos.
Às amenidades fortes e presentes,
aos pormenores incontestes e palpáveis,
aos detalhes.
Miro a composição dos detalhes;
e como neles se afoga todo o resto.
E como neles é fácil encontrar tudo mais de que se compõem
as farsas e trapaças de cada dia.
(Porque é preciso falsear, é preciso esquivar e enganar,
pra não engasgar com as verdades abrasivas
que engolimos todas as manhãs.)


28 de fevereiro de 2008

Notícia de horas mornas



Essas pessoas que passam
a passos violentos,
passam a passear
na porção solitária que lhes cabe
da velocidade-luz
(desse enorme passado coletivo).
Primam pela primavera
ainda que estanque,
ainda que ralinha sob os pés do passarinho.
Fitam e invejam a calmaria que floresce
nos bancos das praças que,
mesmo vazios,
ainda escutam o cochicho baixo
das pedras namoradeiras.


8 de fevereiro de 2008

Nos meus braços



Aí foi onde te deixaram,
nua e imóvel num altar de baixa madeira,
onde te possam ver os plebeus e as vielas vazias.
Fizeram de ti meu bem,
o fruto mascarado do legado silencioso e capital.
O desenho do pecado,
o fracasso dos impérios e dos calcanhares.
E se no sono tropeçares ultrajada e solitária,
vão te beliscar, leve na pele,
para que não te esqueças do teu crime original,
da beleza que carregas
e por ela mereceste o exílio.
Que por ela e para ela morreram homens,
em loucura e devaneio, cegos e atormentados
mirados na carne pura,
forma, mulher, seio.
Não tens culpa amor, é verdade.
Teu lugar não é aí, na comédia escandalosa
dessa farsa vergonhosa
que tramaram contra ti
(esses anjos invejosos).


6 de fevereiro de 2008

Altruísmo



Entre você e eu,
é melhor preferirmos qualquer coisa
que não seja nós mesmos.


5 de fevereiro de 2008

Nove milímetros



Quantas vezes olhei e resolvi que aquele cenário,
aquela moldura,
ficariam intocados.
Seriam diamantes na retina.

E mesmo ali, decidi parar o tempo,
como se ao comando da minha voz tudo se fizesse pedra,
tudo parasse em vidro imóvel,
no segundo que eu quis.

Nesses muitos momentos
em que me capturei Cronos frustrado;
nesses mesmos momentos
em estátuas prometidos...

É aí, no sebressalto quase assustador
em que tropeçam esses ditos momentos
quando se vão,
que se reforça a idéia incisiva de que
ainda é impossivel mensurar
o calibre das amenidades.


Figura de linguagem



Os pormenores da vida são fragmentos da alma.
Metaforicamente.


17 de janeiro de 2008

Conto de título dispensável



Já passava das onze
quando ela se deu conta do fim do cigarro,
do calor incômodo
que subia pelos dedos estáticos.
Dedos de mulher,
que naquele junho
chegado quase que por surpresa,
refletiam uma leveza,
uma outra saudade.
Como quem faz que se levanta,
ela, num esforço mensurado e comedido,
leva ao cinzeiro já visitado,
outra réstia da companhia silenciosa
que lhe fazia sala.
Não carregava porém, nos olhos
aquela calmaria simbólica,
dos que fingem o desconforto essencial
recém causado pela partida,
pelo final,
mas uma claridade casuística
esquecida pela verdade que,
agora longe,
há algumas horas
ainda lhe tocava a nuca.
E escorria
aos cantos da boca contornada,
uma linha engraçada de perfeição,
que imprimia no rabisco feminino da face
uma vergonha interiorana,
sedutora.
Timidez que brilhava longe,
como que o próprio Deus quisesse ver,
com olhos de quem se sabe homem,
a beleza que tem
um sorriso de mulher.


Dentre o ventre



É a simplicidade e o caos
ou o que ela quiser.

É o que se fez em ferro
entre desejo e fé.

O que se fez em seio
e sinceridade,

e se vestiu de calma
e ansiedade.

Que se apossou de tudo
e se chamou mulher.


13 de janeiro de 2008

Inominado



E as horas mal orientadas que nos navegaram
vão ficar pra trás, feito quem perde o trem.
Frio que vai além.
É o que coube e o que a alma pôde suportar.
E todos os espinhos ditos
entre a água e o caos menor,
todos os vidros que espalharam no chão
enquanto dormíamos,
serão veludo silencioso
na precisão de quem não se importa
e apenas ama.


3 de janeiro de 2008

Bamba de gaveta



Quis um samba carinhoso
pra te dar em homenagem,
quis um samba de garagem
que rolasse devagar.

Quis que fosse alegoria,
pra você porta-bandeira
se vestir de ouro inteira,
qual laranja no pomar.

Quis então falar de amor,
mas foi forte o nevoeiro
e quebrou o meu pandeiro,
ficou nada no lugar.

Quarta-feira despedida,
caio morto de cansaço
na beirada do terraço,
coração de batucar.

Nesse meu samba chorão,
não vai ser o nevoeiro
nem a falta do pandeiro.
Pra cuíca reclamar.

A mulata do cordão,
quarta-feira quero ver
com os olhos de querer:
carnaval há de voltar.


2 de janeiro de 2008

A orquídea e o titã



Na sacada vento frio, anunciação de abril.
No abril a solidão é palpavel e densa,
e amortece o corte lento
da cidade lá embaixo.
Daqui de cima, euforia silenciosa;
luz de movimento mudo.

No abril tudo corre como cinema antigo,
cinema lento,
morfina colorida.
Passo a passo o dia escorre dum velho vinil qualquer.
Um vinil sequer.
Conjugação engatilhada no próximo copo.

No abril é sempre um tanto frio,
um tanto só.
Um noir sombreado, um olhar de fraca fixação;
branco e batom.
Desbotado nevoeiro na métrica casuística
que os sonhos escondem.

No abril de pouco cheiro,
arrastado e singular,
distoante e arredio.
Canto quieto e paralelo,
acidez e brio.

E a porta gris cerrada
em que se fecha
belo e vil,
nem com cruz nem com espada,
nenhum outro mês
abriu.